Martha, uma mulher de 60 anos nascida e criada em Brasília, é um exemplo vibrante de resiliência e paixão pela arte. Sua jornada, marcada por desafios e superações, a transformou em uma artista que não apenas encanta com sua voz, mas também advoga incansavelmente pela inclusão e acessibilidade.
Por Bárbara Noleto
Fotos: arquivo pessoal
Aos 22 anos, Martha tornou-se paraplégica após uma cirurgia para remover um tumor na medula. O que poderia ter sido um ponto final transformou-se, para ela, no começo de uma nova forma de existir. Depois de um período difícil, marcado pela revolta e pela adaptação, Martha reencontrou força na fé e na leitura do clássico “Poliana”, que lhe apresentou (ou talvez reafirmou) a ideia de sempre procurar o lado bom da vida.
“Eu sempre tive uma cabeça muito boa, um pensamento muito produtivo, e sempre fui cristã. Minha referência vinha da leitura da Bíblia e, na adolescência, dos livros Poliana e Poliana Moça. A Poliana dizia que a gente precisava acreditar no lado bom das coisas, por pior que estivesse. E eu levei isso comigo.”
A maternidade também ajudou Martha a olhar o mundo de outra maneira. Seu filho, hoje com 36 anos, seguiu a área da educação, assim como ela. Martha ingressou no Ministério da Educação em 1994 e se aposentou recentemente. Nesse mesmo ano, descobriu o canto ao entrar para o Coral Consciências, onde permaneceu por 25 anos. Ela, que estudou piano na adolescência, sempre manteve a música por perto, mas o canto apareceu quase por acaso, depois que uma jovem a ouviu cantar informalmente e a convidou para o coral. “Eu nunca cantei assim, só em casa. Aí eu cantei e nunca esqueci.”
Com o tempo, a música deixou de ser apenas um hobby e passou a ocupar um espaço central em sua vida. Martha aprofundou seus estudos e se encantou pelo canto erudito, especialmente pelas obras de Heitor Villa-Lobos. “Eu conheci Villa-Lobos e me apaixonei. Deu vontade de estudar canto erudito. E fui estudar.”
A carreira musical a levou para fora do Brasil. Com o coral, viajou para o Canadá, México, Estados Unidos, Equador, Argentina, Espanha e Itália. Durante essas viagens, chamava atenção do público por cantar em cadeira de rodas. As reações muitas vezes vinham carregadas de surpresa ou preconceito, o que a motivava ainda mais a mostrar que a deficiência não determina o alcance da voz nem a força da interpretação. “As pessoas olhavam e perguntavam como eu conseguia cantar sentada, por causa da questão do diafragma.”

Em 2018, Martha decidiu trilhar novos caminhos. Gravou músicas para o Spotify, incluindo uma obra de Villa-Lobos, e começou a desenvolver projetos próprios. Em 2023, realizou seis shows com o projeto Inclusão Total, que reunia canções brasileiras e composições autorais, com intérpretes de Libras e audiodescrição. As apresentações ocorreram também em instituições como a APAE e escolas que atendem pessoas em situação de rua. “Essas pessoas não têm acesso à cultura. A mãe se preocupa com a dificuldade do filho, trabalha o dia todo e não sobra tempo. A gente não tem acesso.”
Mais recentemente, Martha viveu um sonho antigo: cantar em uma ópera. Foi convidada pelo maestro Jorge Antunes para atuar como solista na ópera contemporânea “Marielle”, interpretando uma personagem cadeirante, amiga de Marielle Franco. “Foi a primeira vez que fiz uma ópera. Sempre existia essa ideia de que não havia papéis para pessoas cadeirantes. Isso abriu caminhos para outros convites.”
Mesmo com uma trajetória sólida, Martha ainda enfrenta barreiras. Muitos teatros não possuem camarins acessíveis. O preconceito também aparece quando as pessoas só acreditam em sua capacidade depois que a veem cantar. Ela critica produtores que tentam incluí-la em projetos apenas para cumprir exigências de editais, sem interesse verdadeiro em sua arte. “Muita gente me procurou para eu entrar no projeto só para o projeto ser aprovado.” Por isso, escolhe com cuidado cada parceria.
Martha dedica parte de sua rotina a falar sobre inclusão e acessibilidade. Participa de palestras em escolas e eventos, compartilhando experiências e ajudando a repensar ideias equivocadas sobre pessoas com deficiência. Também divide sua vivência recente com o câncer de mama, reforçando a importância de tornar essas realidades visíveis.

Sua história mostra que a deficiência não define ninguém, e que fé, estudo e persistência constroem caminhos possíveis. “Não tenha medo. Vai em frente, porque você é igual a qualquer pessoa na sociedade. A única diferença é que você tem uma deficiência a par.”
Martha canta porque a música lhe traz alegria e sentido. “Eu canto para mostrar aquilo que me dá prazer e aquilo que eu amo fazer. É isso que me faz continuar.” Siga a diva: @mathafreitascantora