Por Barbara Noleto
Fotos: arquivo pessoal
Nascida em 1972, quando a Ceilândia ainda erguia suas primeiras quadras, Débora Zimmer cresceu entre ruas de terra, casas improvisadas e a sensação constante de que o mundo começava ali mesmo, à porta de casa. É musicista, técnica de som e luthier. Mas sua história é atravessada também pela poliomielite, que limitou parte dos movimentos das pernas e a levou ao uso de órteses e muletas canadenses. “Perdi uns 70% dos movimentos, talvez mais”, conta, com a franqueza de quem decodifica a própria vida desde cedo.
A infância, marcada por uma Ceilândia que ela mesma nomeia como “favela”, nunca ofereceu acessibilidade. “Se hoje é pouco, imagina naquela época”, resume. Débora cresceu entre o afeto e as rupturas: enfrentou preconceito, violências e abusos - alguns velados, outros dentro e fora de casa. O silêncio, então, virou abrigo. Entre os 10 e 12 anos, sentiu nascer a disforia de gênero, sem que houvesse nome, linguagem, apoio ou referências para compreender o que vivia. “Eu me sentia alienígena dentro do meu próprio corpo”, diz.
A música chegou como salvação antes mesmo que ela percebesse. Os irmãos participavam de grupos de jovens da Igreja Católica, e a caçula aprendia observando, aproximando-se dos instrumentos como quem encontra um código secreto. E foi assim que o som virou sua voz, quando lhe faltavam palavras.
Arte como refúgio e salto
Na adolescência, a arte foi seu escudo e seu impulso. Débora tentava esconder a disforia, enquanto se lançava na música e, mais timidamente, no teatro, compondo trilhas, operando equipamentos, descobrindo texturas sonoras que mais tarde marcariam sua carreira. Nos anos 1990, já atuava como musicista e técnica de som. Prestava manutenção para lojas especializadas, convivia com a precariedade do setor e a ausência total de políticas públicas.
Em 1998, integrou o estúdio Artimanha, um dos mais importantes de Brasília, onde ficou até 2002. Ali, ao lado do irmão e parceiro musical, Neno Vieira, formou o Fluido Acústico. As versões de Pink Floyd correram o DF e consolidaram o nome da dupla. Em 2001, montou seu estúdio em casa, que se profissionalizou entre 2004 e 2005, já em Ceilândia. A virada dos anos 2000 trouxe políticas culturais que finalmente abriram portas.
Débora costuma dizer que vive “no nó da interseccionalidade”: é pessoa com deficiência, mulher trans e moradora de periferia. Esse lugar, marginalizado e, ao mesmo tempo, fértil, moldou sua sensibilidade e seu caminho. Em 2010, nasceu o trio DNP, que lançou três álbuns até 2018. Em 2020, ela iniciou uma transição tardia, acompanhada de estudos de psicologia para entender e curar reações que carregava desde a infância. Voltou-se para fora, abandonou a introspecção rígida. Tornou-se mais inteira.
Suas referências musicais formam um mosaico que vai do sertanejo raiz à MPB, do pop internacional ao rock progressivo. Beatles abriram a adolescência; Milton, Beto e Lô ampliaram as paisagens; Genesis e Yes afinaram o ouvido técnico. Débora chama seu estilo de “progressiva brasileira com contrastes da música brasileira”. É também luthier autodidata: desmonta, ajusta e constrói guitarras desde menina, quando precisava compensar a precariedade dos instrumentos que tinha.
Apesar da dedicação, não encontrou apoio em casa. Os pais acreditavam que a arte não sustentaria nenhum dos filhos, ainda mais Débora, sendo PCD.

Voz para quem não é visto
Hoje, Débora se inquieta com a invisibilidade de artistas com deficiência. Questiona por que tão poucos chegam ao mainstream e aponta o peso do estigma que ainda ronda corpos dissidentes. Para ela, as barreiras não estão apenas na falta de acessibilidade física, mas também na forma como o mercado cultural define quem pode e quem não pode ocupar a cena.
“A gente não quer ser exceção ou inspiração. Quer presença. Quer espaço.”
Enquanto denúncia apagamentos, produz. Prepara o álbum da sua persona, Lady Z, uma criatura “dramática e um pouco caricata”, sua “sombra” na linguagem junguiana. O lançamento está previsto para dezembro, seguido de uma temporada de shows no ano que vem.
Lady Z e a travessia
Lady Z não nasceu para ser só um personagem. Surgiu como um portal: um modo de Débora liberar camadas que, durante décadas, precisaram ser guardadas. Na psicologia junguiana, ela seria a sombra, tudo o que se esconde para sobreviver. Para Débora, virou entidade criativa. Com figurinos psicodélicos, teatralidade e uma ironia afiada, Lady Z expande o que a artista pensa sobre identidade, corpo e performance. É uma forma de existir para além da dor, sem deixar de nomeá-la.
O disco, que finaliza agora, sintetiza essa trajetória. Traz arranjos que caminham entre o progressivo e a música brasileira, experimentações eletrônicas e guitarras que ela mesma construiu. Cada faixa carrega pequenas memórias da Ceilândia: o barulho das feiras, os rádios ligados nas calçadas, a pulsação da periferia que nunca perdeu dela o gesto de origem.

Débora descreve o próprio trabalho como algo “entre o subterrâneo e o sonho”, uma síntese que ajuda a entender de onde vêm suas composições e para onde elas apontam.
Em dezembro, ela apresenta seu novo disco como Lady Z, personagem que assume o palco com intensidade e liberdade. Por trás dela, está a trajetória de Débora: artista da Ceilândia, que cresceu cercada por música, aprendeu a montar guitarras ainda jovem e encontrou na arte um caminho possível em períodos de dor e incerteza.
O álbum reflete esse percurso. As faixas revelam uma artista que usa a música para organizar experiências, confrontar expectativas e afirmar presenças que historicamente foram colocadas à margem. O trabalho reúne força, técnica e uma leitura sensível das vivências periféricas e dissidentes.
Lady Z não aparece apenas como performance, mas como linguagem e posicionamento. O projeto integra memória, reivindicação e a busca por novos imaginários para corpos que raramente ocupam o centro da narrativa. No disco, Débora transforma vivências pessoais e coletivas em som e reafirma que a música produzida na periferia continua sendo um espaço de criação, futuro e transformação cultural. Siga a diva: @deborazimmerg