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As Encruzilhadas Artísticas de Lua Cavalcante

A artista Lua Cavalcante se emociona com a arte que expõe aquilo que é inerentemente humano. Em seu repertório artístico, ela tem como objetivo provocar o espectador a efeitos de espanto, mas direcionando-o às encruzilhadas poéticas acerca da narrativa de resistência que atravessa o seu corpo. Uma história individual sobre um corpo com deficiência, mas que representa reivindicações e toda uma comunidade negligenciada.

Por Marianna França
Fotos: Acervo da artista

Em sua segunda entrevista para a Traços, Lua conversa com a gente sobre os conceitos iniciais de uma nova exposição, que reflete possíveis caminhos voltados à ancestralidade aleijada. A pesquisa vai além da conscientização ou acessibilidade; ela segue em direção a narrativas de resistência permeadas pela dinâmica do capitalismo, com o objetivo de aprofundar as discussões em torno da cultura DÉF. Vamos conferir?

Lua Cavalcante foi entrevistada pela primeira vez na edição 55 da Traços DF, em 2022, para a seção Instantes.

O que mudou no seu trabalho desde a última entrevista para a Traços, em 2022? O que aconteceu nesse período?

O que mudou no meu trabalho foi uma maior maturidade. Eu participei de mais exposições e consegui olhar para o meu trabalho sob outros ângulos. Também tive muito mais pessoas conversando e refletindo sobre o meu trabalho. Eu participei da Bienal das Amazônias, que foi uma grande exposição e que ainda está em itinerância. Recentemente, participei de um projeto chamado Diálogos DEMONSTRA, no SESC Paulista e no SESC Pinheiros, instituições grandes e importantes no Brasil. E agora estou na pesquisa da minha exposição individual, que será inaugurada no ano que vem [2025]. Estou pesquisando para criar as obras dessa exposição.

E o que você quer trazer com essas obras? Já que você disse que seu trabalho ganhou mais maturidade.

Quero expressar um pouco mais dessa maturidade, com uma profundidade poética mais elaborada. Tenho ganhado força e reconhecimento nacional enquanto artista com deficiência, que pesquisa e pensa a deficiência para além da lógica da inclusão. Minha pesquisa está indo por outros caminhos; não estou apenas ligada a essa lógica de inclusão e acessibilidade.

Porque você sai do espaço óbvio, né? Conta um pouco: para onde você está indo?

Tenho entendido minha pesquisa como uma afirmação e reivindicação de uma ancestralidade aleijada, uma pesquisa que apoia e reforça o princípio de que existe uma Cultura DÉF específica das pessoas com deficiência. Somos parte de uma comunidade específica, que é a comunidade com deficiência, e estamos embasados em pontos de conexão, lidando com a resistência que somos obrigados a ter porque o mundo não é acessível.

O que seria a Cultura DÉF? Se você pudesse especificar mais.

Nós, pessoas com deficiência, temos modos de vida muito parecidos. A minha deficiência tem uma forma muito individual de ser, mas ainda assim, enfrentamos as mesmas barreiras. As barreiras sociais nos unem, fazendo de nós uma comunidade. Temos dificuldade em acessar empregos, salários dignos e escolaridade de qualidade. Mas também enfrentamos a dificuldade de ser percebidos enquanto indivíduos pela sociedade. Nossas personalidades são desrespeitadas frequentemente e nossos saberes são invalidados, especialmente na lógica acadêmica.

Estamos construindo o que entendemos como as epistemologias da deficiência, entendendo e afirmando esses corpos, que são os que mais lutam contra o capitalismo, por exemplo. O capitalismo não consegue agir sobre nós da mesma forma que age sobre as pessoas sem deficiência. Ele é mais brutal conosco, mas ao mesmo tempo, temos mais força para resistir. Não temos corpos dispostos a servir ao capitalismo 100%, como os corpos sem deficiência, que têm mais disponibilidade física para isso. O corpo com deficiência não pode trabalhar 44 horas semanais. Então, temos uma lógica social que atira nossos corpos para uma mesma situação, e é nessa lógica que entendo a cultura DÉF. As características dessa cultura envolvem a elaboração de narrativas de resistência.

Temos corpos que são "impossíveis" para o capitalismo, mas que, ainda assim, sobrevivem a ele, criando narrativas, ficções e arte. Muitos artistas deficientes estão nesse processo de construir e concretizar essa lógica de cultura e narrativa DÉF.

Uma dúvida minha que surgiu com a sua fala: você acredita que pessoas com deficiência têm mais consciência sobre o próprio corpo do que as que não têm deficiência?

No sentido de reconhecimento de limites, eu imagino que sim. Eu sei muito melhor quais são meus limites do que meus colegas de trabalho, por exemplo. Eu delimito de forma mais firme onde consigo e onde não consigo ir no meu emprego atual, porque não há pessoas com deficiência nos meus ambientes de trabalho. Por exemplo, hoje estou de atestado com dor na coluna. Não vou trabalhar porque estou com muita dor e não vou ultrapassar esse limite. Tenho uma amiga sem deficiência, que também está com torcicolo, e ela foi trabalhar. Eu estou na mesma posição de dor, mas o trabalho pode muito bem esperar por mim. Eu não vou forçar meu corpo, mas ela vai com dor. Contudo, nem toda pessoa com deficiência tem essa mesma consciência. Sinto que meus amigos artistas com deficiência têm uma leitura mais apurada, mas isso não é comum a todos.

E como você está trazendo isso para a pesquisa do seu novo trabalho?

Não estou abordando diretamente essa lógica do trabalho, mas estou muito focada em construir novas narrativas. Estou trocando muito com artistas com deficiência, como João Paulo Lima e Jéssica Teixeira, ambos do Ceará, ou Cláudio Rubino e Daniel Moraes, de São Paulo. Estamos em uma conversa que vai desdobrando para as pesquisas de cada um de nós. Minha pesquisa segue para o lugar de como podemos criar ficções corporais e narrativas críveis sobre a existência, ainda que seja uma existência marcada por resistência. Estou indo por essa lógica de afirmar e consolidar com mais robustez a ancestralidade DÉF e os corpos ficcionais a partir da deficiência.

E na sua percepção, como você acha que a arte pode reconfigurar esse pensamento, especialmente com relação às pessoas com deficiência e suas questões? Como ela pode ajudar a tornar o mundo mais acessível?

Para mim, a arte é justamente esse canal mais acessível para criar reconfigurações. A arte é o caminho possível para essas construções, oferecendo narrativas outras e mais democráticas. Ela é como um jogo, uma negociação, e é nesse espaço que consigo transitar mais facilmente, apesar das dificuldades. Não quero dizer que é simples ou fácil, mas é mais acessível para essa negociação.

Como você traduz, na estética da sua obra, essa questão da resistência?

Não busco a beleza nas coisas, mas me preocupo com uma estética que envolva o princípio de tocar as pessoas. Trago muito esse lugar do que me emociona. É muito mais sobre como as coisas me tocam e como elas falam sobre meu corpo e a minha trajetória de ancestralidade DÉF. Minha estética está baseada na lógica do meu próprio corpo. Me preocupo com o quanto a obra me representa ou não, mais do que com a beleza padrão simétrica. Quando falo de belo, não me refiro a refinamento estético, mas ao impacto que a obra tem sobre a minha experiência.

Interessante você falar isso, porque agora quero saber: o que te emociona?

O que me emociona são artistas que falam sobre uma verdade muito inerente. Tenho muita apreciação por obras e artistas que trazem suas próprias encruzilhadas. A arte me emociona porque ela fala sobre o que é muito humano. Isso é o que me atravessa: a humanidade.

Me lembro de uma referência pop, que é a Frida Kahlo.

A Frida Kahlo me emociona, mas a imagem dela foi roubada para servir ao capitalismo. Frida é uma vítima, assim como Van Gogh, por exemplo. Eles são "sequestrados" pelo capitalismo para representar o artista ideal, que é o artista morto, que não pode reivindicar o sentido de sua própria arte.

Que não pode reivindicar o sentido da própria arte.

Exatamente. Qualquer coisa pode ser atribuída a eles, já que essas pessoas não estão disponíveis para reivindicar. A Frida é uma das artistas mais conhecidas do mundo, mas ninguém a reconhece como uma artista com deficiência. Ela é lembrada como feminista e mulher, mas ela era aleijada. Isso não acompanha a fama dela. A imagem da Frida foi sequestrada. Isso é algo que reivindico e também trago para o meu trabalho, especialmente nessa exposição. Quero relembrar ao mundo que a Frida foi sequestrada da sua própria pertença, que é a deficiência.

E talvez, indo um pouco além, nem percebida como PCD… E você já tem nome para essa exposição?

Sim, temos um nome, mas ainda precisamos guardar um pouco. A exposição será lançada em dezembro de 2025, na galeria-escola A Pilastra, no Guará, em Brasília.

Você gostaria de falar mais alguma coisa para encerrarmos a entrevista?

Acho muito importante trazer essa lógica e apresentar os princípios da sensibilidade à inclusão, mas também é preciso começar a aprofundar os sistemas. Acho que já deu tempo das pessoas aprenderem sobre isso. Tem se falado sobre isso há muito tempo. Temos artistas com deficiência fazendo muito, temos professores, educadores, material sobre deficiência, mas agora é hora de as pessoas sem deficiência se apropriarem e se aprofundarem nisso. Não dá mais para ficar na lógica de "estou aprendendo", já estamos em 2024. Muitas famílias no Brasil têm pessoas com deficiência, e é preciso olhar para essas pessoas com dignidade, carinho e respeito, querendo entender suas histórias e colaborar para eliminar barreiras.

Eu costumo dizer que a deficiência é a "minoria das minorias", porque as pessoas já estão minimamente letradas sobre racismo, LGBTQIAPN+, machismo, mas a deficiência ainda está muito atrás. E a deficiência pode afetar qualquer pessoa em qualquer minoria. Então, por que estamos tão atrás nessa luta e na difusão do conhecimento sobre deficiência?

Por que estamos tão atrás?

Não sei. Talvez seja porque o capitalismo tem muita ênfase em manter essa exclusão. Talvez por isso. Somos dissolvidos em muitas camadas da sociedade, em diferentes tipos de pessoas. Então, por que estamos tão atrás, mesmo com um movimento PCD forte, ativo e resistente? Por que não sabemos sobre isso, nem vemos isso nas escolas? Não sei. Isso é algo para refletirmos.

SAIBA MAIS: @luascavalcante