Quando acessibilidade vira estética e a arte deixa de excluir

Quando acessibilidade vira estética e a arte deixa de excluir

Por Angélica Cabral
Fotos: arquivo pessoal

“Fazer para todos não é slogan: é metodologia”. A frase é de Amanda Lyra, 35 anos, artista, pesquisadora, empreendedora e uma das vozes mais potentes na luta por acessibilidade cultural no Brasil. Nascida em uma família de artistas, ela costuma dizer que chegou à arte “pelo DNA”: o pai roqueiro, o avô e os tios músicos, a avó artista plástica, a prima do teatro. A casa sempre cheia de ensaios, rodas de samba, MPB, rock.

Não demorou para o palco deixar de ser sonho distante e virar cotidiano. Aos 16 anos, Amanda começou a tocar na noite. De lá pra cá, não parou mais. Abriu shows de Titãs, Ira e Luiza Possi, dividiu palco com Elba Ramalho, Maria Gadú, Kleiton & Kledir, Rick Ferreira, Fernando Magalhães, entre outros. Fez shows em teatros com projetos como “Reverbero”, “Pinhão, Pimenta e Mel” e “Resistências Delyrantes”, além de lançar o clipe-protesto “Sem Reclamar”, acessível e protagonizado por PCDs.

Mas essa história também foi atravessada pela Atrofia Muscular Espinhal tipo 3. Nascida em 1990, ela cresceu em um Brasil em que pouco se falava sobre AME e quase nada sobre capacitismo, termo que hoje nomeia a discriminação contra Pessoas com Deficiência e já é crime. Enquanto as outras crianças corriam, Amanda desenhava. O papel era o lugar onde o corpo podia estar em paz.

Na adolescência, quando começou a tocar profissionalmente, fazia de tudo para esconder a deficiência. Passava horas de pé nos palcos, evitando sentar, porque depois, não conseguia se levantar sozinha. Até que um acidente a levou à cadeira de rodas e, ali, ficou evidente o tamanho da barreira. Ela enfatiza que a maioria das casas de espetáculos não tem acessibilidade real e, quando tem, é no máximo para o público (e com muitas ressalvas entre o que é acessível e o que é acessável!). E, foi a partir daí, que virou a chave de que, se não pensarmos em acessibilidade na arte, não perdemos só público, mas também artistas com talento.

Essa virada fez nascer outra Amanda: a que passa a olhar para a arte não só como expressão, mas como campo de disputa por direitos. Hoje, ela é pesquisadora e líder de tecnologia do Mapeamento Acessa Mais, projeto do Ministério da Cultura que mapeia artistas e profissionais com deficiência na indústria cultural. Também é CEO da Acessara, um hub de acessibilidade que atua em três frentes: tecnologia, ESG e cultura.

Da Acessara saem iniciativas como a Pesquisa Nacional de Acessibilidade nos Cinemas, em parceria com a Warner Bros. Pictures e a Universal Pictures; o Programa Bira Carvalho de Acessibilidade, com o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro; e a realização de eventos culturais acessíveis, com protagonismo de artistas com deficiência. Foi assim que nasceu, por exemplo, o festival Resistências Delyrantes, que levou para o Centro Cultural da Diversidade, em São Paulo, uma programação inteira com artistas PCD no palco e nos bastidores.

Para Amanda, ocupar esses espaços é dar luz e condições dignas de trabalho a pessoas que são invisibilizadas há séculos. É, antes de tudo, resistência. Em cerca de 98% dos palcos em que tocou, ela foi a primeira ou a única artista com deficiência. E isso não é coincidência: estúdios sem banheiro acessível, salas de gravação com degraus, locações sem rampas, equipes sem formação em acessibilidade. “A gente é atravessada pela falta de acesso e depois nossa capacidade é colocada em xeque”, resume.

Ao mesmo tempo, ela enxerga um movimento de mudança. No Rio, onde vive, Amanda vê iniciativas como o Encontro Nacional de Acessibilidade Cultural, o Fórum de Acessibilidade do Museu de Arte do Rio e cursos de formação cada vez mais disputados. Mas faz questão de lembrar: informação ainda é pouca, infraestrutura é precária e políticas públicas eficientes ainda são exceção.

Quando fala de futuro, Amanda não economiza ambição: sonha com um Brasil em que toda obra já nasça multissensorial, acessível digital e fisicamente, com roteiros marcados para audiodescrição, cenários pensados para leitura tátil, Libras integrada como linguagem artística, não como “recurso extra”. Acessibilidade como estética, não como apêndice.

E deixa um convite: “Quem cria arte acessível hoje, colhe amanhã. Até 2050, 30% dos brasileiros terão 60+. Não é sobre um público específico, é sobre entender que, enquanto o direito é negado pra gente, é certeza de que será negado quando chegar a sua vez”.

Amanda segue mobilizando estruturas – no palco, na pesquisa, na tecnologia – para que esse futuro chegue logo. Até lá, dá para acompanhar seus passos pelos perfis @amandalyraoficial, @acessara, @pcdvale e @mapeamentoacessamais, ou entrar em contato pelo e-mail amandalyra@acessara.com.br. Vamos seguir?!