Para abordar a ditadura militar, HQ ceilandense mescla o fantástico e o real
O quadrinho Campo de vaga-lumes discute o autoritarismo a partir do olhar de órfãos da ditadura.
Jailson Soares é escritor, produtor cultural e compositor do DF. Já Rafael Moura é produtor audiovisual e roteirista. Ambos nasceram e cresceram em Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal. Os dois se conheceram em meados de 2005 e, por cultivarem o interesse em comum por quadrinhos, já conversavam sobre produzir algum trabalho juntos.
Ao mergulhar na ancestralidade, Jailson encontrou a inspiração necessária para criar a HQ Campo de vaga-lumes. “A ideia central se liga a uma história de família, quando minha mãe perdeu meus avós e teve que se virar na vida com apenas nove anos de idade. O contexto político também se apresentou por conta de uma tia criada em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na Bahia.
Ambas mulheres pretas, que só souberam da existência uma da outra por força do destino”, ele contou.
A HQ acompanha uma jovem negra chamada Ina, que é separada de seus pais durante a ditadura militar. Alguns anos mais tarde, os corpos são identificados e encontrados na Vala de Perus.
Para ressignificar e dar vazão a memórias traumáticas e íntimas, em Campo de vaga-lumes, os autores variam entre o real e o fantástico. A Vala de Perus, por exemplo, foi um cemitério clandestino real descoberto em 1990, na Zona Oeste de São Paulo, feito para enterrar aqueles que a ditadura classificou como indigentes. Com o surgimento das ossadas, a memória de mais de mil mortos pela ditadura militar foi resgatada.
“Quantas famílias encontravam ali a resposta para a pergunta nunca respondida sobre o paradeiro de familiares, pais, mães? Essa é uma oportunidade de refletirmos e darmos espaço para a história dessas famílias pretas que foram agredidas e caladas”, explicou Rafael Moura.
A protagonista Ina, finalmente de posse das cinzas dos pais, parte em uma jornada baseada em fatos (sur)reais, como definem os autores, com origem em Ceilândia e com destino ao Campo de vaga-lumes, no interior de Minas Gerais.
Ceilândia foi a cidade escolhida para dar vida à fábula principalmente por representar a desigualdade e exclusão social presentes e determinantes na narrativa de Ina. “A história da protagonista se cruza com essa história de segregação e exclusão. A transferência para Ceilândia, a precariedade da vida na periferia, a distância do Plano Piloto e a falta de oportunidades são elementos que moldam a vida da personagem e refletem a realidade de muitos moradores da cidade”, explicou Rafael Moura.
Para Jailson, escrever sobre ditadura militar pela perspectiva das famílias negras foi um momento para acessar e lidar com angústias antigas: “Em muitos momentos o processo foi doloroso porque começamos a escrever em 2021, e lidar com sentimentos de perda (eu havia acabado de ter meu irmão assassinado em 2020) foi mexer em feridas expostas. Por ser um escritor negro, falando da dor de pessoas pretas, isso causou incomodos, tristezas, reflexões profundas”, compartilhou o roteirista.
Campo de vaga-lumes, lançada em setembro deste ano, vai além do divertimento e proporciona uma experiência reflexiva. Apoiada pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), a HQ foi ilustrada por Oberas e diagramada por Lucas Marques, com produção executiva de Gustavo Fontele. A primeira tiragem da história foi de 1000 exemplares. Atualmente, os autores se preparam para realizar vendas on-line e aceitam pedidos diretamente pelo Instagram @ojailsonsoares.
Por: Sara Barreto
Ficha Técnica
Nome: Campo de vaga-lumes
Autor: Jailson Soares e Rafael Costa
Ilustração: Oberas
Ano: 2024
Páginas: 103