Entre o Fogo e o Festival, Roni Sousa leva a periferia de Brasília para a tela grande

Entre o Fogo e o Festival, Roni Sousa leva a periferia de Brasília para a tela grande

Em um cenário cinematográfico frequentemente dominado por narrativas do eixo Rio-São Paulo, um filme vindo do coração do Brasil já ganhou o coração do quadradinho. "Fogo Abismo", do diretor brasiliense Roni Sousa, é o único representante do Distrito Federal na Mostra Competitiva Nacional do prestigioso Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. E é um manifesto poético e político que reivindica o lugar de fala e de imagem da periferia.

Nascido e criado na Vila Rabelo, uma comunidade que ele descreve como uma "favela rural" à margem da capital planejada, Sousa transforma suas memórias de infância em uma obra impactante, que troca os cartões-postais do Plano Piloto pela realidade crua e bela de uma Brasília invisível.

A Gênese de "Fogo Abismo"


A decisão de transformar suas vivências em filme não veio de um único estalo, mas de um processo de reencontro com o passado. Em 2021, ao revisitar arquivos pessoais, Roni Sousa percebeu que suas memórias da Vila Rabelo carregavam uma urgência contemporânea. "Percebi que muitas daquelas imagens me levavam direto para a infância e para as contradições da Vila Rabelo naquele tempo. Coisas que, infelizmente, ainda são atuais: a marginalização das crianças, a precariedade das casas, as queimadas e derrubadas", conta o diretor.

O título, "Fogo Abismo", é a síntese dessa vivência. A casa de sua família, uma das primeiras da região, fica à beira de um abismo, de onde, na seca, surgiam os incêndios que ameaçavam a comunidade. "Cresci, literalmente, entre o fogo e o abismo", revela Sousa. A escolha das palavras transcende o geográfico e mergulha no afetivo, representando o medo, a perda e também a resiliência de quem floresce em meio à adversidade.

Para dar conta de um passado com poucos registros fotográficos, Sousa abraçou uma linguagem híbrida. O filme mescla documentário e fabulação, utilizando seu primo, fisicamente parecido com ele na infância, como um alter ego para revisitar suas próprias memórias. A ficção, para ele, torna-se uma ferramenta para acessar verdades profundas que o realismo puro talvez não alcançasse.

Vila Rabelo, A "Favela Rural" Protagonista

Longe de ser apenas um cenário, a Vila Rabelo é a alma de "Fogo Abismo". O diretor a descreve com uma dualidade fascinante: uma "favela rural" que combina a beleza da biodiversidade do Cerrado com a constante vulnerabilidade social e ambiental. As mesmas encostas que abrigam uma natureza exuberante são palco de erosão e deslizamentos, engolindo memórias e espaços de brincadeira.

Filmar na própria comunidade, no entanto, trouxe desafios inesperados. A presença da câmera inicialmente gerou desconfiança entre os moradores, acostumados a um olhar externo e estigmatizante da mídia tradicional, que frequentemente associava a imagem da Vila a riscos e invasões, justificando ações de derrubada. "Fazer com que a comunidade entendesse que meu olhar não era o de fora, mas o de dentro", foi um processo delicado, afirma o cineasta. A diferença, segundo ele, estava no pertencimento. Era um vizinho, um amigo, um familiar que estava por trás das lentes, e essa cumplicidade transformou o receio em orgulho. "É como se dissessem: ‘o filho do Zé Boy agora é cineasta, está na televisão, no jornal’. Isso me toca muito", emociona-se.

O Cineasta de Múltiplas Funções

"Fogo Abismo" é um filme forjado na garra. Sem verba ou editais, Roni Sousa se tornou um "faz-tudo", acumulando as funções de diretor, roteirista, montador e responsável pela trilha sonora. O que começou como uma imposição da realidade se converteu em uma grande escolha artística. "Gosto de filmes de baixo orçamento e com fichas técnicas reduzidas. Eles carregam uma força própria", defende. Para ele, essa economia de meios proporciona liberdade criativa e uma intimidade que se reflete na tela.

Essa imersão total não foi, contudo, um ato de amadorismo. Sousa investiu em sua formação, buscando cursos de montagem com profissionais de referência em Lisboa, onde atualmente desenvolve sua pesquisa acadêmica. O resultado é uma obra que, nas palavras do diretor artístico do festival, Eduardo Valente, é "muito, muito potente". Para Roni, o segredo dessa força está na honestidade do projeto: "É um filme pequeno em recursos, mas imenso em verdade."

Pertencimento e Exclusão na Capital

A trajetória de Roni Sousa é marcada pela dualidade de crescer à sombra de uma capital monumental e excludente. "Eu só conheci o Plano Piloto aos 16 anos, mesmo tendo nascido e crescido no DF", relata. Essa descoberta tardia da "outra" Brasília expôs a fronteira invisível que separa o centro da periferia. Durante anos, ele escondeu suas origens, dizendo ser de Sobradinho, nunca da Vila Rabelo, para escapar do estigma.

Hoje, o cinema se tornou sua ferramenta para subverter essa lógica. A seleção de "Fogo Abismo" para o Festival de Brasília é, para ele, um ato de afirmação. "É a prova de que as histórias da periferia de Brasília não são apenas cenário, mas também autoria", celebra. O filme representa um movimento de reivindicação de espaço, memória e futuro, um deslocamento simbólico da margem para o centro.

O Futuro e a Mensagem

Com a estreia no festival, Roni Sousa espera que "Fogo Abismo" ganhe o mundo, circulando em mostras nacionais e internacionais. Ele já tem novos projetos em andamento, e a Vila Rabelo continuará sendo seu principal foco criativo.

Sua jornada, no entanto, já reverbera como uma inspiração. Questionado sobre que conselho daria a outros jovens artistas de periferia, ele é direto e encorajador: "Façam! Não esperem aprovar um edital, conseguir um financiamento ou qualquer outro apoio externo. A hora de começar é agora. O que você produzir hoje será suficiente."

É com essa urgência e autenticidade que Roni Sousa inscreve seu nome no cinema brasileiro, provando que as histórias mais poderosas podem nascer do fogo, à beira do abismo, onde a arte se torna a mais pura forma de resistência.

O curta ainda tem mais duas exibições previstas: dia 19/09, às 21h, no Cine Brasília, e dia 20/09, às 14h30, no Sesc 504 Sul. Ainda no dia 20, às 10h, o diretor estará no Hotel Ramada para um debate.  

Foto de capa: Diego Bresani
Demais imagens: divulgação