Prepare-se para conhecer os diversos significados de "é preciso estar atento e forte". Mergulhamos na vida de Cris Muñoz — uma mulher que desafia definições e transforma diagnósticos em arte. Autista nível 1, com TDAH, altas habilidades e uma trajetória que mistura palhaçada, maternidade e neurociência, Cris é a prova de que a neurodiversidade não cabe em rótulos. Prepare-se para uma história que vai de ex-freiras a palhaços revolucionários. 🎭✨
Por: Angélica Cabral
Fotos: Acervo da artista
Atriz, palhaça, palestrante, professora e pesquisadora, com a alma inquieta e muita sede de viver! Cris Muñoz tem 52 anos, é autista, com TDAH, altas habilidades e algumas comorbidades, provavelmente causadas pelo diagnóstico tardio. Segundo ela, ainda é mãe da melhor filha do mundo: Sophia, também autista, só que de nível 2 de suporte e não-verbal. Para aumentar a originalidade da família, Jorge, seu pai, é um ex-padre, que recebeu (somente em 2024 e aos 95 anos!), o diagnóstico de autismo; e Ana, sua mãe (In memorian), foi freira dos 18 aos 32 anos!
INFÂNCIA: UM UNIVERSO DE ARTE E DIFERENÇAS
Apesar de não terem seguido carreiras artísticas, todos em casa respiravam arte e estimulavam isso. A mãe tocava piano e era apaixonada por literatura; o pai foi tenor solista. Já a Cris, tinha uma notória dificuldade de interação com crianças da mesma idade e isso desencadeava crises terríveis.

Aos 15 anos, a família buscou um mecanismo para desenvolver suas habilidades sociais: o teatro. E parece ter surtido efeito! Não para virar uma atriz propriamente dita, mas para aprender sobre o comportamento humano e fazer com que ela não se sentisse tão diferente dos outros à sua volta. No universo dos palcos, ficou fascinada pela beleza da diversidade, encantando-se com narrativas, mentes e corpos diferentes. Ali, compreendeu que todo sucesso e o aparente fracasso são passageiros e fazem parte do processo de aprendizado eterno, tanto na vida quanto na arte.
A JORNADA ACADÊMICA: DE SHAKESPEARE AOS PALHAÇOS AUTISTAS
Quando perguntada sobre sua formação acadêmica, a resposta não poderia ser algo simples e sem poesia... O amor pela leitura e pela escrita, inicialmente, a levou à Faculdade de Letras, onde permaneceu por dois anos e saiu. Depois, foi para Filosofia e lá se foram mais dois anos sem a sensação de pertencimento, até que uma amiga a instigou a tentarem juntas o vestibular para Artes Cênicas na UNIRIO. Passou com louvor e as coisas começaram a fazer sentido. Anos mais tarde, retornou à mesma UNIRIO para cursar o Mestrado e, lá, pesquisou as relações entre o teatro e a questão de gênero aplicadas à peça “Macbeth”, de William Shakespeare.

Na mesma ocasião, teve sua filha e o desejo incondicional de fazer do mundo um lugar mais acessível para ela e para todas as pessoas. Então, depois de alguns anos pesquisando autismo, acessibilidade e neurociência, voltou novamente para a UNIRIO; desta vez, para fazer o Doutorado. Dedicou a pesquisa aos jogos dentro da arte da palhaçada, todos construídos com, para e a partir de pré-adolescentes autistas! Como o céu é o limite, concluiu ainda uma formação em “Direitos Humanos com ênfase em Direitos Culturais das Pessoas com Deficiência” e outra formação de “Audiodescrição”... Acham que ela parou? Não! Emendou no Pós-Doutorado e está, há três anos, tentando tornar o teatro mais acessível, enquanto desenvolve uma pesquisa sobre cuidados artísticos para pessoas neurodivergentes em situação de vulnerabilidade social.
TRIPLA EXCEPCIONALIDADE: O “COMBO” QUE DEFINE SUA LUTA
Voltando um pouquinho à sua condição de tripla excepcionalidade, vamos explicar o que é isso para nossos leitores. Como a própria Cris Muñoz se denomina, é uma espécie de combo de mutações genéticas. Ela nasceu com condições específicas: autismo, classificado como de nível 1 de suporte, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e altas habilidades/superdotação. Existem pessoas com essa combinação, mas cada uma é diferente da outra em muitos aspectos. O caso dela representa uma compatibilidade com 0,7% da população mundial.

Perguntamos se a condição de PCD afeta de alguma maneira a sua arte, e a resposta foi cortante: “com certeza! É deste lugar que eu observo o mundo, as pessoas e experiencio a complexidade da vida. Esse é um lugar político, onde incidem estigmas e preconceitos com os quais eu lido diariamente”, declarou. Com muita lucidez, ela faz uma constatação que é um soco no estômago: o mundo não foi pensado para pessoas com deficiência. Cris completa dizendo que sua interação com tudo que a cerca é extremamente sensorial e não consegue evitar crises de sobrecarga. Ressalta que ainda precisa lidar com as dela e com as da filha. A comunicação passa a ser de outra ordem e consiste muito mais naquilo que não é dito do que nas palavras. Isso, por si só, já é uma proximidade com a natureza da arte. Para além disso, lutar por espaço e reconhecimento é um trabalho exaustivo.
O MUNDO NÃO FOI FEITO PARA PCDs: UMA CRÍTICA AFIADA
A Traços pediu para que ela deixasse de lado a Cris Muñoz artista e pensasse na Cris Muñoz mulher e cidadã, e se as políticas de inclusão a PCDs têm evoluído. Cris não tem papas na língua ao falar de inclusão:
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Sobre políticas públicas: “Avancemos? Sim. Mas é como construir uma casa em cima de areia movediça: o retrocesso está sempre à esprecha.”
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Sobre romantização: “PCDs não são ‘heróis’ ou ‘coitados’. Somos humanos complexos, e a arte é nossa ferramenta para exigir humanidade.”
E sobre conciliar diversos papeis, como palhaça, escritora, palestrante, consultora de acessibilidade e mãe, ela faz uma declaração comovente e real: PCDs que são mães de filhos e filhas com deficiência têm algo que assombra constantemente: a falta de permissão para morrer ou mesmo de adoecer. Isso é extremamente violento, mas é necessário seguir, como na música:
“ É preciso estar atenta e forte, não temos tempo de temer a morte”. A vida é agora! Cris Muñoz.
Sobre seus projetos, o maior continua sendo o de criar a filha como uma mulher confiante e feliz, com plena consciência da sua deficiência e de que isso não a diminui em nada, embora traga muitas limitações concretas que precisam ser encaradas e não romantizadas. No mais, continua buscando conscientizar e informar, através de projetos de acessibilidade em teatro, dança, shows, palestras e com seu livro “ Ovelhante”. Ah! Agora, em 2025, ainda vai rolar a estreia de um filme! Alguma dúvida de que será incrível?
Quer acompanhar e saber mais sobre essa inspiração em forma de gente, siga o perfil @criscasaneurodiversa no Instagram! Além de estimulante, é quase obrigatório, né?