O mundo em cores e silêncio: ODRUS, o artista surdo que transforma muros e vidas com o grafite

O mundo em cores e silêncio: ODRUS, o artista surdo que transforma muros e vidas com o grafite

Rafael Caldeira dos Santos é ODRUS, grafiteiro, educador e referência na arte urbana inclusiva. Com personagens próprios, oficinas para crianças surdas e passagens por festivais internacionais, ele constrói uma trajetória onde a surdez é potência criativa

Por Bárbara Noleto

O grafite entrou na vida de Rafael Caldeira dos Santos em 2001, e nunca mais saiu. Com o tempo, o artista goiano radicado em Brasília adotou o nome ODRUS, a palavra “surdo” escrita ao contrário, como assinatura artística e também como afirmação de identidade. “Escolhi porque ouvintes me falavam que era um nome forte. E já que sou surdo, me representa por completo.”

A escolha não é apenas simbólica: é uma afirmação de existência. ODRUS enxerga o mundo com olhos treinados para os detalhes, os movimentos e as cores. Para ele, o grafite é mais do que expressão: é extensão da sua língua.

“Os surdos são visuais. Percebemos detalhes no olhar. Minha experiência é totalmente visual, e tento refletir isso ao máximo nos meus trabalhos.”

Entre personagens autorais, o mais marcante é o “Odrusinho”, figura que carrega elementos da cultura surda e aparece em murais no Brasil e no exterior. A arte de ODRUS mistura estética e identidade, com forte presença da periferia, da negritude e da acessibilidade. “Minhas obras valorizam a beleza negra e temas relacionados à surdez e PCD em geral.”

Oficinas com representatividade

A trajetória de educador começou com um convite para dar uma oficina em São Paulo. A experiência o motivou a desenvolver metodologias próprias de ensino para crianças surdas. “Lembro de como eu, como criança surda, experienciava o mundo. Isso influencia muito no interesse das crianças pela minha oficina.”

Ele usa Libras e recursos visuais para ensinar técnicas como spray, perspectiva e composição. “Uso experiências visuais com exemplos e classificadores próprios da minha língua.” A identificação entre educador e alunos surdos é imediata — e poderosa. “Percebo a alegria das crianças na identificação comigo por ser surdo também.”

O impacto vai além da infância. Ex-alunos, tanto surdos quanto ouvintes, já procuraram ODRUS anos depois para contar que seguiram na arte. Fora do Brasil, ele também deu aulas particulares a artistas que hoje atuam profissionalmente.

Reconhecimento e barreiras

O reconhecimento chegou com convites para festivais, exposições e projetos internacionais. Ele integra a GAMEX, maior grupo de grafiteiros profissionais do Brasil, e já teve seu trabalho apresentado nos Estados Unidos. Foi nesse momento que percebeu: já era um artista profissional. “Antes eu amava arte, mas não percebia como uma profissão. Esse convite me fez despertar.”

Apesar das conquistas, as dificuldades persistem. A principal barreira está na comunicação institucional. “Ter que escrever projetos ou ler editais em português limita muito. A falta de acessibilidade e informações em Libras nos torna dependentes de ouvintes.” Muitas vezes, a contratação de um intérprete é vista como um custo, e não como um direito básico.

Embora tenha ministrado oficinas em diversas escolas bilíngues, ODRUS afirma que ainda não teve parcerias concretas com organizações da comunidade surda. Mesmo assim, segue buscando ampliar o alcance de sua arte e da sua voz. “Quero levar minha arte para todos os cantos do Brasil e do mundo, mostrar que o surdo é capaz de se tornar o que quiser.”

Arte como projeto de mundo

Seu processo criativo varia conforme o projeto. Às vezes a inspiração surge livremente, outras vezes parte do diálogo com clientes ou curadores. Gosta de pesquisar referências conforme o tema e o local onde a arte será realizada. “Spray de boa qualidade e parede lisa são as melhores ferramentas sempre”, afirma.

O maior desafio técnico foi se aprofundar no realismo. Com estudo e prática, evoluiu. “Ainda tenho muito a desenvolver e aprender, mas estou contente com os últimos resultados.” Sobre bloqueios criativos, prefere respeitar o tempo. “Se não estou me sentindo bem, relaxo e espero a criatividade fluir naturalmente.”

Entre seus sonhos, está o de criar um festival acessível, com foco em artistas PCD. Também quer continuar levando o “Odrusinho” para outros países. “Quero que ele represente a comunidade surda e leve nossa cultura para o mundo.”

Para os jovens artistas, o conselho é direto: “Estudem, se esforcem e não esqueçam de fazer arte. Hoje muita gente só pensa no lucro, mas arte vem de dentro e traz felicidade.”

O público pode acompanhar seus trabalhos, murais e oficinas pelo Instagram: @odrusone. Em cada traço, Rafael reafirma: a arte também pode ser língua, e o silêncio, criação.