Ancestral: Afro-Américas - Uma Jornada Sensorial Pela Diáspora Negra

Ancestral: Afro-Américas - Uma Jornada Sensorial Pela Diáspora Negra

Imagine entrar em um espaço onde cada obra sussurra histórias de resistência, onde cada pincelada carrega séculos de luta e beleza. É exatamente essa a sensação que você terá ao pisar no Centro Cultural Banco do Brasil-RJ para conferir "Ancestral: Afro-Américas", uma exposição que não é apenas para ser vista, mas para ser sentida na pele.


Por: Angélica Cabral


Com mais de 160 obras que dialogam entre Brasil e Estados Unidos, a mostra é um encontro íntimo com a alma da diáspora africana. Com curadoria de Ana Beatriz Almeida e direção artística de Marcello Dantas, a mostra celebra a riqueza e a diversidade, explorando as conexões culturais e históricas dos povos afrodescendentes brasileiros e norte-americanos. No CCBB RJ, cada sala se transforma em um portal temporal que conecta passado, presente e futuro através da arte negra. 

A exibição é organizada em três eixos temáticos: Corpo, Espaço e Sonho. Esses conceitos estruturam a experiência sensorial e simbólica proposta ao visitante. O Corpo negro é visto como arquivo vivo, o Espaço como lugar de disputa e resistência, e o Sonho como dimensão espiritual e ancestral.


Quando o Corpo Vira Arquivo Vivo


O primeiro eixo temático, "Corpo", nos recebe com uma revelação poderosa: nossos corpos negros são bibliotecas vivas, arquivos ambulantes de memórias ancestrais. E entre os destaques deste tema está a escultora norte-americana Simone Leigh, que fez história em 2022 ao se tornar a primeira mulher negra a representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza e é aclamada mundialmente por por sua representação dos corpos femininos negros em objetos de cerâmica e bronze que dialogam com a arte africana e o modernismo europeu.

Leigh, que nasceu em Chicago em 1967, descreve seu trabalho como "autoetnográfico" – uma pesquisa profunda sobre si mesma que se transforma em arte universal. Suas esculturas são manifestos silenciosos que fundem o corpo feminino negro com arquiteturas africanas tradicionais. Uma de suas obras mais emblemáticas, e que pode ser vista na exposição, é Las Meninas II, que aborda questões prementes de equidade racial e de gênero, aprofundando-se na complexa história do imperialismo ocidental, da escravidão e da representação da subjetividade feminina. 


Foto: Jaime Aciolli

Do lado brasileiro, Rosana Paulino nos convida para uma conversa íntima por meio de agulha e linha. Primeira mulher negra a ter uma exposição individual na Pinacoteca de São Paulo e primeira negra doutora em Artes Visuais no Brasil, Paulino transformou o bordado – tradicionalmente associado ao universo doméstico feminino – em arma de resistência política.

Suas obras mais impactantes, como a série "Bastidores" (1997), mostram fotografias de mulheres negras com bocas, olhos e gargantas literalmente costurados. Não é apenas arte; é denúncia visceral do silenciamento histórico da mulher negra. Cada ponto é um grito abafado, cada linha é uma tentativa de reconexão com vozes que foram caladas por séculos.

E então chegamos a Kara Walker, a artista que transformou a técnica de silhueta de papel em uma das formas mais provocativas de arte contemporânea. Walker, que aos 28 anos se tornou uma das mais jovens ganhadoras da prestigiosa bolsa MacArthur, tem um método único: ela corta à mão cada figura, criando panoramas gigantescos que ocupam paredes inteiras.

O que torna Walker especialmente fascinante é sua capacidade de usar uma técnica historicamente associada à elite branca para expor as violências do período escravocrata. Suas silhuetas negras sobre paredes brancas criam um contraste visual que é também político: o que parece belo à distância revela-se perturbador quando nos aproximamos. É arte que não permite neutralidade, você sai transformado, questionando tudo o que pensava saber sobre a história americana.


O Espaço Como Campo de Batalha

O segundo eixo, "Espaço", nos lembra que cada território é um campo de disputa, cada lugar carrega memórias de resistência. Aqui encontramos Abdias Nascimento, o pioneiro que não apenas fez arte, mas criou movimentos. Nascimento entendeu, décadas antes de muitos, que representatividade na arte não é luxo, e sim necessidade vital para a construção de uma identidade negra positiva no Brasil.


Foto: Divulgação


Sonhos que Atravessam Oceanos

O terceiro eixo, "Sonho", talvez seja o mais emocionante. É onde a espiritualidade ancestral se encontra com as aspirações futuras. O núcleo de Arte Africana Tradicional, com curadoria de Renato Araújo da Silva, funciona como uma ponte temporal: máscaras, esculturas e objetos rituais que nos conectam diretamente com as raízes que nunca foram cortadas, apenas temporariamente esquecidas.


Foto: Jaime Aciolli



"Ancestral: Afro-Américas" tem uma história própria de migração. Começou em São Paulo, passou por Belo Horizonte, onde houve um acréscimo ao acervo africano, e agora chega ao Rio de Janeiro, mais robusta e completa. É quase poético: uma exposição sobre diáspora que ela mesma migra, se adapta e se enriquece a cada parada.

Mais do que um passeio estético, conferir essa mostra é um gesto político e sensível... É dizer “sim” a um convite potente para novas formas de ver, sentir e imaginar o mundo a partir da negritude. E para dar um colorido ainda mais especial, a gente encerra o texto com versos de Luiz Carlos da Vila:

"Chegou o áureo tempo de justiça
Há o esplendor, do preservar a natureza
Respeito a todos os artistas!
A porta aberta ao irmão
De qualquer chão, de qualquer raça
O povo todo em louvação
Por esse dia de graça!"


"Ancestral: Afro-Américas" representa um dia de graça, onde a arte negra finalmente ocupa o espaço que sempre mereceu: o centro da conversa sobre o que significa ser humano no século XXI.

Serviço:
Exposição: "Ancestral: Afro-Américas"
Local: Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB RJ
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro, Rio de Janeiro – RJ
Temporada: Até 1º de setembro de 2025
Horários: De quarta a segunda, das 9h às 20h (fechado às terças)
Entrada: Gratuita, com retirada de ingressos no site oficial do CCBB ou na bilheteria
Classificação: Livre

Dica da redação: Reserve pelo menos duas horas para a visita. Esta é uma exposição para ser degustada, não devorada.