Do terreiro ao palco: a poesia do samba ganha voz no CCBB do Rio

Do terreiro ao palco: a poesia do samba ganha voz no CCBB do Rio

Por Angélica Cabral
Fotos: Thaysa Lota


O mais brasileiro dos ritmos costuma chegar aos nossos ouvidos embalado por melodias que grudam na memória e fazem o corpo mexer. Mas o espetáculo “Negra Palavra – Poesia do Samba”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-RJ), propõe um deslocamento: em vez de ouvir o samba como música, o público é convidado a experimentá-lo como poesia. A montagem, concebida pelo Complexo Negra Palavra e dirigida por Renato Farias e Muato, busca revelar a força poética dos versos que, em muitos casos, foram naturalizados como simples canções populares, mas que carregam profundidade literária e muita memória. 

A produção presta homenagem a Nei Lopes, intelectual, escritor e pesquisador, que faz de sua obra uma cartilha necessária para compreendermos a dimensão histórica, cultural e social do samba no Brasil. Ao referenciar Nei, o Negra Palavra reforça a ideia de que o gênero vai além do entretenimento, porque além de ser  um documento vivo da cultura negra, é também um instrumento de resistência. Não por acaso, o projeto foi contemplado pelo edital Pró-Carioca Linguagens, que incentiva produções comprometidas com a diversidade e a valorização de narrativas plurais.

No palco do Teatro III do CCBB podem ser ouvidas também as letras de mestres como Cartola, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Martinho da Vila, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz e Zé Kéti, entre tantos outros. Elas são declamadas pelos atores Adriano Torres, Eudes Veloso, João Manoel, Jorge Oliveira, Lucas Sampaio, Rodrigo Átila e Olívia Araújo. A escolha de dizer em vez de cantar as letras cria um estranhamento inicial, mas logo se revela como uma estratégia poderosa para que o público perceba nuances escondidas nos versos e metáforas que passam despercebidas quando embaladas pela música. Cada pausa, cada respiração, cada silêncio contribui para evidenciar a poesia do samba em sua forma mais pura.

Além da força poética, a peça se destaca pelo processo de criação, que não ficou restrito aos ensaios em salas fechadas. O grupo levou células do espetáculo para rodas de samba e quadras de Escolas, como a Renascer de Jacarepaguá e a Estação Primeira de Mangueira, em uma espécie de “pedido de licença” às comunidades que mantêm viva a tradição. Essa aproximação reforça a proposta de pensar o samba em seu lugar de origem: o chão da comunidade, onde a arte e a vida se confundem. No próximo mês, será a vez da Portela receber o projeto.

Para quem vai assistir “Negra Palavra – Poesia do Samba”, prepare-se para mergulhar em um ritual de escuta. Para muitos espectadores, pode ser surpreendente ouvir letras consagradas fora do compasso que lhes deu fama, mas essa é justamente a força da encenação: transformar canções em poemas falados, deslocando a atenção da melodia para a palavra. Nesse processo, o espetáculo abre espaço para reflexões sobre identidade, ancestralidade e sobre o papel da arte na valorização da memória negra.

Com uma hora de duração e classificação livre, a peça é uma experiência estética que provoca tanto quem já é apaixonado por samba, quanto quem se aproxima pela primeira vez desse universo. É teatro, mas também é aula de história e ato político. É homenagem e, ao mesmo tempo, manifesto. Em tempos de urgência cultural, Negra Palavra mostra que o samba não se limita a entreter: ele resiste, ensina, emociona e, sobretudo, diz.

Serviço:
“NEGRA PALAVRA - POESIA DO SAMBA”
Centro Cultural Banco do Brasil - Rua Primeiro de Março, 66 - Centro – Rio de Janeiro
Temporada: Até dia 5 de outubro de 2025.
Horários: Quinta-feira a sábado, às 19h | Domingo, às 18h | Segunda-feira, às 19h.
Duração: 60 minutos.
Venda: na bilheteria do teatro ou pelo site do CCBB.
Classificação: Livre.